segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Quem entenderia?


                Há, vez ou outra, em cada encontro o desencontro... Em cada olhar, uma censura! Em cada amor, um trágico e atrevido solilóquio. Nem sempre conseguimos falar dos sentimentos... Quando muito balbuciamos silábicas confidências que, vez ou outra, são inaudiveis. E, aí, uma solidão atávica acaba avassalando os sonhos! E o que nos resta? A raiva por não conseguir expressar o que vai na alma... Ou até mesmo o remorso por dizer o que não era para ser dito. Magoamos! Ficamos magoados! E o amor se vai e ficamos enviesados em nós cegos tão difícieis de desatar. Adiantaria pedir perdão? Não! O outro não conseguiria enxergar o medo que se instalou em nós. E os nós vão-se tornando tão sérios e sistemáticos que acabamos mutilando o melhor que tínhamos em nós. Sonhos devassos... Desfeitos numa neblina escura... 

               Difícil nos fazer entender. A doença aparece e nos tornam indefesos. Quem entenderia uma repentina mialgia surgida no romper do tempo? Quem entenderia um terrível mal estar capaz de nos colocar nos braços da morte e, no instante seguinte, estar na maior euforia? Quem entenderia? É como se olhar no espelho sentir-se linda... Abaixar os olhos e se olhar novamente e se achar a bruxa malvada que enganou branca de neve na floresta. Coração dispara. A cabeça fica zonza. O corpo sente calafrios... Os braços adormecem... E tudo é tão real que presenciamos o prenúncio da morte. Alguém entenderia? Não, ninguém entenderia! Ninguém entende a mudança de humor... Ninguém entende o medo... O medo não, o pavor. O corpo entra em ebulição. E, como um vulcão, começa a sacudir  e as lavas queimando por dentro, jorram! Meu Deus, como explicar isso em palavras? Como dizer: "Socorro, estou morrendo!" Ninguém acredita. E ri. E debocha! Faz piada! Critica... 
               E o vulcão explode... E, se na natureza ele provoca um grande desastre, no corpo o desastre é ainda mais intenso. Magma, gases e partículas quentes (como cinzas) escapam para a superfície em forma de lágrimas, ejectando altas quantidades de poeira, gases e aerossóis que corroem as vísceras causando o resfriamento de quem está por perto. E aí o resultado já é conhecido: causa a poluição do amor. Todo sentimento gostoso cede lugar a um terrível mal estar e o outro vai embora magoado e chamuscado pela erupção involuntária.
                A quem fica restam as cinzas da sua síndrome não compreendida e não tratada. Mais nada!

Roziner Guimarães

Você prefere o buraco ou as alturas?



                Li, há uns quinze anos, um conto de um autor conterrâneo meu, Luiz Vilela, e me identifiquei de pronto com o personagem. Essa identificação talvez se tenha dado devido ao meu jeito já, naquela época, um tanto esquivo de ser. Já disse que nasci “Gauche”? Se não disse, digo: quando eu nasci um anjo torto, a exemplo de Drummond, também me disse: “Vai ser gauche na vida!” e eu fui. Nem questionei. Achei a palavra bonita e me adentrei nela. As palavras sempre mantiveram um fascínio em mim. Mas, naquela época, eu era analfabeta. Pensei que ser gauche era algo como ser único, totalmente singular. E isso fez a diferença em mim. A singularidade ganhou forma na palavra. Por meio dela, fui-me fazendo e me deixando fazer. Nem percebi a distância entre o fazer e o se deixar fazer. Aos poucos, fui-me esgueirando para o meu buraco e abandonando o convívio com a mediocridade, com a hipocrisia... Tornei-me inepta para o convívio com o outro. Calei. Calando, talvez eu conseguiria ouvir melhor a voz que, dentro de mim, gritava. Ledo engano. O grito era tão gutural que me impedia ouvi-lo, apesar de escutá-lo. E eu tentava... Tentava!

               Comecei a tatear caminhos. Eu os queria retos, mas as curvas me alcançavam e, por muitas vezes, derrapei-me nelas. Umas derrapagens complicadas que me fizeram perder o equilíbrio e bater com a cara no chão. Levantava, e de rosto lavado, voltava a caminhar. Lembrei-me de meu pai dizendo quando acontecia algo que o deixava envergonhado: “minha cara caiu no chão, catei ela toda suja de terra e a botei de novo no lugar”. Pois então: eu, com o sorriso amarelo, lavava a cara e me punha de novo em/de pé. Nem percebia que estava no mesmo caminho escorregadio e cheio de curvas. De novo, novas quedas. E, nesse cai e levanta, afinal me ensinaram a ser persistente, cheguei até aqui.

               Bakhtin me disse, há algum tempo, que “vivo no universo das palavras do outro”. É a necessidade do viver-com. Quem escreve, querendo ou não, vive com o outro. Entretanto, viver-com é diferente de conviver-com. E posso dizer sem medo que sempre escrevi sem convivência. Sempre vivi em mim... As urgências eram minhas. Não, do outro. E a dificuldade de/em com-viver com o outro foi ganhando uma dimensão superlativa. Embrenhei-me num mundo meu. Lá fora, o barulho consome minhas energias e me deixa sem audição para me ouvir. Esgueirava-me mais e mais para o meu refúgio nas palavras. Fiz delas minhas aliadas e confidentes. Por que eu necessitaria do outro se a palavra o substituía tão bem? Quando eu sentia desejo de me comunicar-com, eu lia.  A leitura me inebriava a alma e supria o desejo. Voltava para o meu mundo e me fazia palavra. Palavra minha. Não mais, do outro. E ficava tranqüila e serena. Escrever era a mágica. Bastava pegar o lápis e as palavras se derramavam no papel. Aí fui percebendo que as palavras começaram a me iludir. E fui ficando órfã delas. Não cria mais nelas. Comecei a abandoná-las. E a minha fome foi-se tornando voraz. Já não mais me satisfazia a leitura inocente. Eu queria mais! Mas as palavras se tornaram “palavras apenas, palavras pequenas”.

                Ao abandonar as palavras, roubei de mim eu mesma... Deixei de com-viver com. Fui perdendo o gosto pelo devaneio. Sem elas, percebi-me jogada numa intempestiva solidão. O buraco ganhou um tamanho e formato descomunal e eu me vi sendo engolida... Comecei a sentir uma dor intangível. Não tive alternativa a não ser voltar a escrever. Mas já não havia mais aquela simetria entre mim e elas. Tinha muito por dizer, mas as palavras, na sua redondeza de outrora, já não mais me significavam. Queria-as obtusas! Escurecidas pelos paradoxos que agora se infiltrarão em mim. Muitos ganchos me enganchando numa interrogação infindável. Comecei a escrever torto. Enviesado.

               Fiz-me destra com a alma canhota. E a culpa disso tudo foi do anjo torto que me inspirou a ser poeta. Ao escrever minhas poesias, assumi uma dimensão também superlativa que me conduziu a uma condição em que se me diluiu a identidade social. Com isso, fui percebendo a minha total inexistência fora da palavra. Abandonei as vírgulas e os pontos. Fui criando pré-pontos! Reticências várias! E assim, numa quimera lingüística, fui construindo uma relação de orgia com a palavra. E ela, obedecendo ao ritual, passou a dar novamente significância à minha voz. Hoje, se não escrevo, não me significo. Se escrevo, percebo o mimetismo que existe entre mim e o mundo... Sinto o deboche... A zombaria... O alarido lá fora. Isso já não importa. Aqui dentro, cumpro o ritual nessas adversativas antagônicas. Sigo paradoxalmente o meu destino. Sei que não sou única e que continuo gauche nesta vida. Todavia, melhor ser gauche do que ser analfabeta.  Melhor ser tatu do que condor... Este voa alto, mas vive comendo merda! Deixe que zombem! Deixe que gritem... Deixe! Sempre haverá um buraco e um tatu ensimesmado... Ou um condor vaidoso!

Roziner Guimarães