Prólogo
Começo pelo avesso: justificando o emaranhado de temas deste texto. Acordei com uma ideia fixa na cabeça: preciso escrever sobre isso. E de onde virá a inspiração? Do ensaio de Pedro Demo: “A educação, após Auschwitz”? Do filme de Steven Spielberg “A Lista de Schindler”? Do livro de Michel Foulcault “Vigiar e punir”? Do poema de Eduardo Alves da Costa “No caminho com Maiakóvski” ou do mito de Sísifo? Imagino que de todos eles, porque, embora tratem de temas diferenciados, em todos eles pode-se ler a amargura, a hostilidade, a arrogância, a estupidez... Mas se pode também perceber a esperança e a quase súplica à reflexão. Portanto, a partir deles, nasceu:
Testemunho
Assim foi...
Escrevi já faz algum tempo que estou em “tempo de mudanças”. Mas as mudanças não ocorrem por acaso e nem de um dia para o outro. Elas vêm-se fazendo diuturnamente. Na que me embrenhei agora, nasceu, creio, em 2002, quando terminei o mestrado. Naquela época, eu estava cheia de sonhos e o desejo de mudança era tanto que, apesar das ondas, fui remando... Oito anos se passaram. Enfrentei marés baixas e cheias. Tsunamis. Mas pensei que seria possível alcançar, se não uma ilha paradisíaca, pelo menos um lugar tranquilo e sereno onde eu pudesse, de fato, exercer com dignidade a profissão que escolhi. Que nada! Meu barco acabava encalhado na areia... Mas eu era resistente. Empurrava-o e o punha de volta a velejar... Eu era sísifo renascido.
Assim é...
... Hoje, depois de várias vezes tentar desencalhar meu barco, cansei-me do olhar de “eu mando, você obedece”. Cansei-me do indisfarçado, mas silencioso, “cala a boca”. Cansei-me do “obrigado a fazer de conta que faz, mas não faz”. Cansei-me do “blá blá blá”... Spencer Johnson, autor de “Picos e Vales”, se soubesse que o livro dele é lido para nada, talvez chorasse. Livros de autoajuda não ajudam a curar a analfabeta cegueira de alguns, que não compreendem que quem está em cima, no pico, pode voltar para o vale. Talvez, por isso, eu tenha me cansado também dos murros na mesa para demonstrar um sórdido e falso poder. Cansei-me da sinistra hipocrisia que ronda a profissão do “faz de conta”. Eu não nasci para “fazer de conta”. Eu faço conta de tudo que faço, porque acredito no que faço... Faço com amor. E é, justamente, por não aceitar o “faz de conta” que me tornei dispensável. Foulcault concordaria comigo e diria: “a punição, (minha cara), é o meio encontrado pelo poder para tentar corrigir as pessoas que infligem as regras ditadas pelo poder. Por meio da punição, as pessoas terão receio de cometer algo contrário às normas do poder.” Meu caro Foulcault, por não aceitar o adestramento, como tantos outros, fui para a “Lista de Schindler”!
Parti, então, com a alma lavada e com a certeza do dever cumprido, mas trago esta reflexão: na “Lista de Schindler”, quem foi “listado” ganhou a vida e quem ficou fora continuou no campo de concentração e depois foi morto. Todo cuidado é pouco... Quem será a próxima vítima?
As reminiscências...
Minha formação pessoal e profissional sempre esteve pautada na esperança, na civilidade, no respeito às minhas crenças e ao próximo. As escolas em que estudei eram humanistas. Além disso, faço parte de uma família em que o respeito, a consideração e o afeto sempre estiveram em foco. Meu pai, apesar de ser dentista prático, honrou sua profissão até o fim. Por que eu desonraria a minha? Isso me faz lembrar os versos de Eduardo Alves da Costa,
"[...]
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
[...]"
Se eu aceitar essa violência, amanhã nem voz mais terei. Nem motivos para escrever. Nem para viver.
As consequências...
Essa educação “concentrada”, como nos campos de Auschwitz, fez com que eu abrisse mão de ser educadora. Deixei de acreditar que eu pudesse fazer algo para mudar essa realidade. Comecei a ficar angustiada e perdi totalmente o desejo de estar em sala de aula. Ali eu já não me significava, embora percebesse em alguns (poucos) alunos e professores o também desejo de significância. Mas somos raros... Eu estava me tornando “médica” e, assim como os médicos em Auschwitz, eu também estava aviltando minha profissão me “unindo” (sem querer) a tantos outros, naquela região da Polônia, chamados de doutores da infâmia. Eu “ajudava” a exterminar não mais a falta de conhecimento de meus alunos, pelo contrário, “compactuando” com essa educação, no mínimo, deselegante, eu matava neles um ser humano mais digno e capaz de mudar essa realidade.
Como afirmou Hebbel: "Existem coisas que devem causar a perda da razão, ou então não se tem nenhuma para perder". Eu perdi a razão: adoeci. Fiquei deveras contaminada pelo vírus da indecência humana. As dores ficaram por demais fortes e o desencanto pela profissão foi uma das consequências dessa contaminação. Creio estar sofrendo da Síndrome de Burnout. Mas isso agora pouco importa. Estou em voo para outras paragens...
Não vou dizer que não volto para a sala de aula. Talvez eu volte um dia, mas posso dizer, com toda certeza, se voltar, não voltarei como alguém sufocada nas câmaras de gás de uma sala de aula. Voltarei, se acreditar que será diferente. Voltarei se tiver a oportunidade de vivenciar as “belas teorias” na prática. Não estudei para ver aprisionados os meus ideais... Não estudei para viver “uma mentira pedagógica”... Estudei porque a educação me encantava. Estudei porque estar em uma sala de aula era para mim motivo de orgulho tanto como aluna quanto como professora...
Agora percebo que Perrenoud, Adorno, Gadotti, Paulo Freire, Mafesolli e tantos outros, para muitos, não passam de “lindas teorias” para serem discutidas em encontros pedagógicos de início de ano, mas totalmente impossíveis de serem vivenciadas. Que Auschwitz não se repita! Eu vou ao encontro de novos horizontes. Meu voo se eterniza na esperança!
Roziner Guimarães
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