sexta-feira, 11 de março de 2011

Testemunho


Prólogo

               Começo pelo avesso: justificando o emaranhado de temas deste texto. Acordei com uma ideia fixa na cabeça: preciso escrever sobre isso. E de onde virá a inspiração? Do ensaio de Pedro Demo: “A educação, após Auschwitz”? Do filme de Steven Spielberg “A Lista de Schindler”? Do livro de Michel Foulcault “Vigiar e punir”? Do poema de Eduardo Alves da Costa “No caminho com Maiakóvski” ou do mito de Sísifo? Imagino que de todos eles, porque, embora tratem de temas diferenciados, em todos eles pode-se ler a amargura, a hostilidade, a arrogância, a estupidez... Mas se pode também perceber a esperança e a quase súplica à reflexão. Portanto, a partir deles, nasceu:

Testemunho

Assim foi...

               Escrevi já faz algum tempo que estou em “tempo de mudanças”. Mas as mudanças não ocorrem por acaso e nem de um dia para o outro. Elas vêm-se fazendo diuturnamente. Na que me embrenhei agora, nasceu, creio, em 2002, quando terminei o mestrado. Naquela época, eu estava cheia de sonhos e o desejo de mudança era tanto que, apesar das ondas, fui remando... Oito anos se passaram. Enfrentei marés baixas e cheias. Tsunamis. Mas pensei que seria possível alcançar, se não uma ilha paradisíaca, pelo menos um lugar tranquilo e sereno onde eu pudesse, de fato, exercer com dignidade a profissão que escolhi. Que nada! Meu barco acabava encalhado na areia... Mas eu era resistente. Empurrava-o e o punha de volta a velejar... Eu era sísifo renascido.

Assim é...

              ... Hoje, depois de várias vezes tentar desencalhar meu barco, cansei-me do olhar de “eu mando, você obedece”. Cansei-me do indisfarçado, mas silencioso, “cala a boca”. Cansei-me do “obrigado a fazer de conta que faz, mas não faz”. Cansei-me do “blá blá blá”... Spencer Johnson, autor de “Picos e Vales”, se soubesse que o livro dele é lido para nada, talvez chorasse. Livros de autoajuda não ajudam a curar a analfabeta cegueira de alguns, que não compreendem que quem está em cima, no pico, pode voltar para o vale. Talvez, por isso, eu tenha me cansado também dos murros na mesa para demonstrar um sórdido e falso poder. Cansei-me da sinistra hipocrisia que ronda a profissão do “faz de conta”. Eu não nasci para “fazer de conta”. Eu faço conta de tudo que faço, porque acredito no que faço... Faço com amor. E é, justamente, por não aceitar o “faz de conta” que me tornei dispensável. Foulcault concordaria comigo e diria: “a punição, (minha cara), é o meio encontrado pelo poder para tentar corrigir as pessoas que infligem as regras ditadas pelo poder. Por meio da punição, as pessoas terão receio de cometer algo contrário às normas do poder.” Meu caro Foulcault, por não aceitar o adestramento, como tantos outros, fui para a “Lista de Schindler”!

               Parti, então, com a alma lavada e com a certeza do dever cumprido, mas trago esta reflexão: na “Lista de Schindler, quem foi “listado” ganhou a vida e quem ficou fora continuou no campo de concentração e depois foi morto. Todo cuidado é pouco... Quem será a próxima vítima?

As reminiscências...


               Minha formação pessoal e profissional sempre esteve pautada na esperança, na civilidade, no respeito às minhas crenças e ao próximo. As escolas em que estudei eram humanistas. Além disso, faço parte de uma família em que o respeito, a consideração e o afeto sempre estiveram em foco. Meu pai, apesar de ser dentista prático, honrou sua profissão até o fim. Por que eu desonraria a minha? Isso me faz lembrar os versos de Eduardo Alves da Costa,
"[...]
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
[...]"

               Se eu aceitar essa violência, amanhã nem voz mais terei. Nem motivos para escrever. Nem para viver.

As consequências...

                Essa educação “concentrada”, como nos campos de Auschwitz, fez com que eu abrisse mão de ser educadora. Deixei de acreditar que eu pudesse fazer algo para mudar essa realidade. Comecei a ficar angustiada e perdi totalmente o desejo de estar em sala de aula. Ali eu já não me significava, embora percebesse em alguns (poucos) alunos e professores o também desejo de significância. Mas somos raros... Eu estava me tornando “médica” e, assim como os médicos em Auschwitz, eu também estava aviltando minha profissão me “unindo” (sem querer) a tantos outros, naquela região da Polônia, chamados de doutores da infâmia. Eu “ajudava” a exterminar não mais a falta de conhecimento de meus alunos, pelo contrário, “compactuando” com essa educação, no mínimo, deselegante, eu matava neles um ser humano mais digno e capaz de mudar essa realidade.

                 Como afirmou Hebbel: "Existem coisas que devem causar a perda da razão, ou então não se tem nenhuma para perder". Eu perdi a razão: adoeci. Fiquei deveras contaminada pelo vírus da indecência humana. As dores  ficaram por demais fortes e o desencanto pela profissão foi uma das consequências dessa contaminação. Creio estar sofrendo da Síndrome de Burnout. Mas isso agora pouco importa. Estou em voo para outras paragens...

                Não vou dizer que não volto para a sala de aula. Talvez eu volte um dia, mas posso dizer, com toda certeza, se voltar, não voltarei como alguém sufocada nas câmaras de gás de uma sala de aula. Voltarei, se acreditar que será diferente. Voltarei se tiver a oportunidade de vivenciar as “belas teorias” na prática. Não estudei para ver aprisionados os meus ideais... Não estudei para viver “uma mentira pedagógica”... Estudei porque a educação me encantava. Estudei porque estar em uma sala de aula era para mim motivo de orgulho tanto como aluna quanto como professora...

               Agora percebo que Perrenoud, Adorno, Gadotti, Paulo Freire, Mafesolli e tantos outros, para muitos, não passam de “lindas teorias” para serem discutidas em encontros pedagógicos de início de ano, mas totalmente impossíveis de serem vivenciadas. Que Auschwitz não se repita! Eu vou ao encontro de novos horizontes. Meu voo se eterniza na esperança!


Roziner Guimarães



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13 comentários:

  1. Maria Luján Mattiauda11 de março de 2011 às 13:17

    Querida Amiga:

    Indiscutivelmente você escreve de uma forma FANTÁSTICA.Adorei o texto.Parabéns! com certeza ajudará a muitos.

    Obrigada pela reflexão,

    com carinho e admiração
    Bom final de semana

    M.Luján

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  2. Boa tarde, escritora!

    Fiquei encantado com seu "testemunho". Nele, a gente percebe que sua decepção e angústia é resultado da constatação segura de que, para exercer hoje a profissão de professor, é preciso muitas vezes aceitar que nossos sonhos e crenças sejam vilipendiados. Triste realidade essa!

    O seu texto convoca à reflexão. Realmente ser professor hoje, no Brasil, está bastante complicado e não é só pelo baixo ordenado. É pela falta de respeito, consideração e por tudo que vc assinala no seu texto.

    Mas o que realmente gostei foi perceber que vc tem garra, determinação e coragem ao preferir "abandonar" a profissão a fazer parte do "faz de conta".

    Parabéns pela bela reflexão!

    Aluísio

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  3. Roziner,

    Que testemunho! Parabéns! O texto é excelente!

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  4. Professora,

    Pena que a senhora tomou essa decisão, pois professora como a senhora faz a diferença e vai fazer muita falta. Tô triste!

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  5. Amiga, fiquei muito emocionada ao ler seu testemunho!! Que coisa triste o quadro da educação de nosso país!!

    Sou muito grata por ter me ensinado a ler as entrelinhas, mas tem horas que penso que seria melhor não ter aprendido isso...pq do que adianta a nossa criticidade diante deste Poder Inescrupuloso amarrado e que não nos deixa mudar a realidade?

    Você foi muito feliz ao expor as verdades dos seus sentimentos e sua visão madura a respeito da profissão. Pois, eu, com 3 anos na profissão, me sinto assim: sem esperança, imagina quem está há muito tempo??Sinceramente, não sei aonde vamos parar, pois acredito que estamos no fundo do poço...será que tem como afundar mais??

    Parabéns pelo texto e aqui deixo minha “angústia solidária” a você tbm. Espero de coração que você encontre novos horizontes e supere essa fase!!Pois é o que estou tentando fazer dia-a-dia....

    Bjoss no coração querida!

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  6. Vania Belussi Ceranto13 de março de 2011 às 07:19

    Estou fascinada como você joga encantadoramente com as palavras, mas sobre o monólogo Testemunho, estou com uma dúvida na cabeça, estaria voce realmente fora das salas de aula? se verdade, eu não posso acreditar, seria uma grande perda. Eu como ex-aluna posso também dar meu testemunho de quanto voce ama educar, e com que carinho voce faz isso! Isso é um dom.

    Vania Belussi Ceranto
    beijos

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  7. Minha doce e amada escritora!

    Não creio que deixará a educação. Pode até deixar a sala de aula, mas de educar jamais. Seu texto é um "testemunho" disso. Quem lê os seus textos "se educa", porque vc convoca à reflexão. Uma vez professora, sempre professora, sobretudo quando essa profissão é exercida com tanto amor como vc mesma diz em "as reminiscências" e em "as consequências". Ali está estampado, nas entrelinhas, o seu amor pela educação.

    Também li os comentários e vi o quanto seus alunos a adoram e reconhecem seu valor. Para que "Auschwitz não se repita", é preciso que professores, como vc, estejam firmes tentando desfazer essa "mentira pedagógica".

    Escrevendo, vc consegue mostrar o quanto ainda ama sua profissão. Escreva e continue educando, mesmo fora da sala de aula.

    Beijo gostoso!

    Augusto Cézar

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  8. Nossa quanta dor, decepção... mais que um Testemunho é um Desabafo. Acredito então que fiz certo escolhendo outra profissão. Quando fiz minha monografia, que tratava sobre a influencia das idéias de Paulo Freire em alguns educadores pesquisados, fiquei desapontada quando alguns me perguntaram: "Paulo quem?". Mas, infelizmente, em toda profissão vamos, inevitavelmente, nos deparar com o "sórdido e falso poder" e com a "sinistra hipocrisia" dos seres humanos...
    Desejo Luz, e dias melhores para nós!

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  9. http://twitter.com/888khan715 de março de 2011 às 07:08

    ANALISE CRITICA DO TEXTO “TESTEMUNHO”

    A Autora do texto “Testemunho”, Roziner Guimarães; dá o grito e prece de Pistis Sofia em seu texto. Enquanto Pistis Sofia rogava ao Pai Supremo pra libertá-la definitivamente dos grilhões da Leis Materiais que não deixava sua Alma, brilhante em sua origem, ascender ao Paraíso; Roziner Guimarães está, ao que percebo, no segundo ato de uma trilogia. Pois nesse segundo ato, entra fortemente no mundo psicológico e fundamentos éticos conscientes daqueles que pensam estar ao leme dos Templos do Conhecimento. Isso porque eles pensam que pagaram o desenhista do projeto, o arquiteto, o Mestre de Obras, os pedreiros, os armadores e demais ajudantes no erigir do Templo Acadêmico. Eles, os generais do Lado Negro da Força Acadêmica; até acham que foram eles que compraram todos os materiais de construção utilizados na obra!! E acham, também, que compraram os equipamentos – muitas vezes de péssima qualidade e insuficientes – e todo o acervo cultural do Templo! Será que eles conhecem o principio empresarial da Função Social de um empreendimento!!? Acho que não, pois não se formam mais tantos brilhantes Administradores ultimamente.
    No primeiro ato, do que penso vai desaguar numa trilogia. O primeiro texto da autora exprimiu com fina e aguda lógica sobre a auto estima de alunos e professores; e como é valorizado a educação e cultura no meio escolar e acadêmico. Agora, a autora vai mais longe; apontando, nas entrelinhas – pra quem tiver “radares” perceber – o infame esquema do Lado Negro da Força Acadêmica, em massacrar talentos para que estes, não se fazendo exemplos e não conseguindo ser ouvidos, possam fazer suas dores, agravos e desgostos – que não raramente reflete diretamente em seu status social – se tornar a argamassa necessária pra sedimentar O Império do Mal que vem conquistando mais e mais Faculdades, Cursos de Pós-Graduação e Mestrado no Universo Universitário. Mas, tecendo minha critica se pareço estar longe deste universo como um observador numa dimensão paralela. É porque estou mesmo. Mas já fiz parte deste universo quando este era iluminado por um grandioso Sol Central. E quem se lembra? Olha! Quem não se lembra faz parte do esquema que rola chará!! Sabe ôoh meu; e quem se lembra ou está no sofrimento auto destrutivo ou numa luta quase solicitaria como a autora, sacou Mané!? Qual é mesmo o feminino de “Mané” mesmo!? Não sei, mas não é importante. Importa é que entenderam.

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  10. continuação:
    A autora apenas parece radical aos insensíveis ante a causa da iluminação da Humanidade. Que começa na família e se sedimenta concretamente numa atuação profissional balizada por um meio acadêmico onde tenha imperado o ideal e o amor pela verdade e progresso do conhecimento.
    Em 2006, enquanto trabalhava como voluntário na UEG Anápolis num projeto de informatização pra comunidade; pude ver em várias dependências e comportamentos tidos acadêmico; tentando mascarar, com aspectos tidos doutorais, a disforme e até deletéria rotina de formação daqueles que via adentrar, cheios de sonhos e perspectivas, o ambiente da faculdade. Eu sentia colando neles a insignificância de algumas labutas ali. Mas era claro que havia mesmo um conluio perto do inconsciente entre educadores/as e corpo estudantil. E sabem como eu percebi e percebo como estes não atuantes e tidos como vitimas afogam esta decepção descaradamente, jogado-a pra baixo do tapete!? Eventos festivos, calouradas, bebedeiras e até iniciação sexual como se fosse emancipativa atitude social. E é bem visível mesmo a cultura negra – nas conversinhas e lascívia de comportamentos – que a quase aioria dos jovens universitários buscam nos adornos do sexo, algum brilho e poesia em suas vidas. E essa onda agora de “Sertanejo Universitário” é mesmo pra encher de romance tais atitudes. E Calor boêmio as fugidas pro “escritório” já tão às margens dos campus por aí à fora!
    Mas isso não podia esconder aos dragões em pele humana a face macilenta, a voz sem assertiva e conduta mental desorientado daqueles que vemos. E sempre esperamos que as instituições humanas sejam mesmo Templo Sagrados.
    Eu sempre vejo e sinto o âmago das almas de quem está por perto.
    E pra não me delongar muito em minha análise e critica. Devo dizer que estou muitíssimo interessando em ler o próximo texto da autora. O último ato da trilogia que pressinto – acredito – estar acontecendo. É será maravilhoso que dessa crise e impacto absolutamente necessário pra preparar uma Alma pra grandes conduções e realizações; possa ser o terceiro ato o...
    É claro que não vou completar as reticências!! Hahahahaha! Não quero influenciar nas escolhas e decisões da autora. Mas posso dizer que todo mal sobre a Terra deve ser compensado pelos Guerreiros e pelas Guerreiras vestidas e armadas pela Mãe Terra com uma transmutação pra o Bem. Ou seja, fazer valer as palavras com ações que possam começar rachar, como aqui, as paredes do IMPÉRIO DO LADO NEGRO DA FORÇA ACADÊMICA.

    Carlos Renato P. Costa_*888 Khan7
    Campo Grande MS 15 03 2011 – 11:00 hs

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  11. Minha amada poeta,

    Kd vc? Sinto falta de seus textos. Venho aki a quase dezenove dias e não a encontro. Está td bem?

    Beijo gostoso e (agora) cheio de saudade!

    Augusto Cézar

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  12. Passei para conhecer e aplaudir, este belo espaço. Estou te seguindo, tb e favoritei seu blog em minha lista. Bjs, Emily

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  13. sou professor, e também me sinto angustiano. Cheguei a trabalhar em uma faculdade particular e aconteceu o seguinte:
    1 - na véspera da prova (dentro dos padrões da faculdade), apliquei por minha conta uma "avaliação sobre as aulas e o professor". 90% me deram 10,0. 5% entre 7,0 e 9.0 e somente 5% reclamaram alguma coisa. E tinha o texto escrito com mil elogios que me deixaram emocionados e me fazer pensar: estou no caminho certo.
    2 - veio o resultado da prova: 10% tiraram 10,0; 40% entre 8,0 e 9,0 20% entre 7,0 e 8,0 (na média) e os 30% restante abaixo da média.
    3 - logo após o resultado da prova, a instituição fez a avaliação dos professores junto com os alunos.
    4 - a coordenação então me chamou, dizendo que os alunos estavam reclamando muito das minhas aulas, que eu era muito rigido e etc.
    5 - consegui acesso as notas em outras disciplinas. Verifiquei que eu era o único professor que tinha aluno com nota abaixo da média. Algumas disciplinas tinha 50% dos alunos com nota entre 9,0 e 10,0
    6 - então descobri a verdadeira causa do problema: ousei mostrar para os alunos que para tirarem 10,0 tinham que estudar verdadeiramente.
    7 - resultado: por ter ensinar VERDADEIRAMENTE e não só fingir, fui excluído do sistema.

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