quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Um canto em canto

                                          

  Hoje amanheci meio amarela. Cheia de brotoejas e olheiras. Meu travesseiro conversou comigo a noite toda. Disse-me ele que eu deveria estancar a dor que me encurva. Encurvado estava ele debaixo da minha cabeça. Mas eu resisti à tentação e não me levantei no meio da noite. Persisti em meu abandono. Eu precisava de mim inteira. Se se me levantasse para contemplar as estrelas, aí sim que eu endoideceria de vez. Viriam meus fantasmas e todos eles ririam de mim… Da minha alma alquebrada. E os meus anjos desertariam de mim de vez. Arredariam pé. Decidi que o melhor a fazer seria continuar de olhos fechados fingindo dormir. E as imagens amareladas vinham uma a uma povoar minhas retinas. Quadros sem moldura. E eu emoldurada no pior de mim. Deixei-me quedar no silêncio do meu não sono. Um silêncio por demais barulhento. Mas somente eu o ouvia. Ninguém mais seria capaz de perceber minha insônia nem minha fuga para os abismos mais fundos da minha memória.
 Visitei minha infância. Pulei pinguelas. Atravessei pontes. Tomei atalhos. Pus estacas no meu sorumbático modo de existir. Num canto qualquer do passado, encontrei beija-flores azuis e verdes. Colhi margaridas. Admirei alguns girassóis. Caminhei por uma estrada de terra cheia de areia fofa. Eu estava descalça e podia sentir a maciez do chão. Doces abacaxis escondidos no meio do mato. Chupei um pedaço bem devagar na tentativa de prolongar para sempre aquele momento. Mas de repente do meio do mato saiu um lobo feroz e eu estarrecida de medo, com os olhos estatelados, tentei correr. Não havia ninguém ali para me socorrer. E o lobo uivava e se aproximava de mim. Senti chapeuzinho vermelho na floresta. E que foi feito do caçador para matar o lobo? Será que ele comeria a vovozinha? Comeu! Eu nem tempo tive de perguntar por que aquela boca tão grande… Devorou-me também com a mesma voracidade que eu devorava os abacaxis roubados. É que eu tinha urgência em crescer. Cresci. Fui ser adolescente em terra alheia. Abandonei minhas bonecas. Comecei a usar calcinhas de renda. E eu via gata borralheira se transformando em cinderela. O baile. Quantas máscaras! E o sapatinho de cristal coube perfeitamente no meu pé. Montei no cavalo branco e voei para o castelo do príncipe. Mas lá vivia uma bruxa malvada que me ofereceu uma maçã enfeitiçada e que eu comi com sofreguidão. Dois anos depois lá estava eu jogando as tranças pela janela. Pensava ser Rapunzel. Meu castelo mais uma vez desmoronava e eu estava sem ninguém para me salvar.
Kiss me quick ouvia no velho gravador de voz… E minha interpretação era na base do tatibitate… Mas o que importava era o meu desejo de ser beijada. E o beijo era quase sempre iscariote. Em hebraico יהודה איש־קריות ou em grego Yehudhah ish Qeryoth. Se Cristo fora traído…
Como minha janela sempre fora feita de giz, passei uma borracha nela e, embora tenha ficado alguns borrões, desenhei um céu amarelo e pus meu sonho num balão mágico e o vi voando para longe. Brinquei de ser professora. Na verdade, eu tentava ensinar a mim mesma a ser menos analfabeta. Mas o curso que fiz de educadora foi tão mal feito que não consegui acabar com meu analfabetismo até hoje. E, talvez, por isso, no meio do meu caminho não tenha uma pedra, continua tendo um sonho. E, talvez, por isso, eu continue dançando este tango argentino.
Dizem que sou fatalista, embora determinada. Sou egoísta. Narcisista. Perfeccionista. Exigente. Mas também sei ser compreensiva, comprometida, educada, refinada, bem humorada. Quando amo, amo. Mas nem pense em pisar meu calo. Na primeira vez, calo. Pisa de novo: viro fera. Fico arrogante. Irônica. E invoco todos os deuses para um pacto de vingança. Quando odeio, odeio. Comigo não existe meio termo. De criança a mulher. De bela a fera. De fêmea… Que culpa tenho se meus feronômios estão à flor da pele? Que culpo tenho se os lobos só aprenderam a uivar? Que culpa tenho se continuo acreditando em alguns conto de fadas? Azar de quem vive em terra de surdos-mudos. Eu sou toda assimétrica. Sem religião. Adoro as sinestesias. E sofro com os paradoxos. Mas aprendi a ser pleonasticamente mulher. Aprendi a ficar nua e abandonei a calcinha de renda… Não preciso mais dela para seduzir. A minha nudez me basta. É o meu avesso e o meu direito. Deveres, deixei-os para fazer em outra vida. Nesta, basta-me meus fantasmas despudorados… Meus anjos de olhar enviesado.
Aprendi que preciso viver. E viver nem sempre é preciso, como bem escreveu Fernando Pessoa. Navego… Nem sempre trago comigo uma bússola. Nem remos. Tenho braços fortes. Mas, como meu porto fica além, durante a travessia desse mar bravio, acabo me esbarrando em icebergs enormes que quase fazem naufragar meu frágil barquinho. Mas nem pensar em buscar uma ilha. Quero o mar impetuoso todo para mim. Suas marés cheias. Suas ondas me consumindo. Tsunamis em fúria em mim. É assim que sou. Autêntica, apesar de parecer hipócrita.
Preciso estar apaixonada. Nem só de razão vive o homem. Se tive alguns amantes por esta curta vida, é que precisava me sentir viva. Só se vive quando se ama. Só vivo se estou amando. Mas não me entenda mal. Amante é aquilo que se faz necessário. Providencial. Urgente. Tive urgência de vida e busquei meus amantes. Amei. Se fui amada… Do jeito deles, fui. Mas não me bastou. Quero um amor que seja bom pra mim. Frejat canta bem. Esse é o segredo dele e o meu. Tão simples de desvendar. Mas ainda não encontrei ninguém disposto a ler o meu segredo. Só julgamentos. E eu Joana D’arc me deixo ir para a fogueira. De nada adiantaria dizer o contrário. Quem não entende esse simples segredo não é, de fato, o príncipe que procuro. Mas eu vou assim até o fim. Só me entregarei totalmente àquele que fizer jus ao título de amante. Não sou bruxa, herege, idólatra, mas, se tiver de ser queimada viva pelos meus sonhos, serei. Não abdicarei do trono que me foi destinado. Se alguém não estiver disposto a ler com cuidado o segredo e ser rei que não se aproxime da rainha. Porque, se se aproximar sem desvendar o segredo, será vassalo. E de vassalos, cansei. Não sou suserana… Sou apenas mulher.  Só quero ser amada!

Roziner Guimarães

PS: Esse texto foi publicado no blog: http://rggvida.wordpress.com/ no dia 17/01/10.Trago-o para cá para divulgar o blog.

2 comentários:

  1. Um canto em canto, é um encanto de canto..!!
    adorei ..

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  2. Obrigada, Gauder! Muito bom saber que vc gostou do texto! Volte quando quiser e puder! Para mim, será sempre um prazer receber sua visita.

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